A Cigarra e a Formiga

A Cigarra e a Formiga é uma das fábulas atribuídas a Esopo e recontada por Jean de La Fontaine em francês.

A cigarra e a formiga (ilustração de Gustave Doré)

Nos países francófonos, as fábulas de La Fontaine são ensinadas às crianças desde a mais nova idade e todos as conhecem de cor, e sua versão da fábula da cigarra e da formiga é a mais conhecida delas, no Ocidente.[1]

Enredo

Esopo conta a história de uma cigarra que canta durante o verão, enquanto as formigas trabalharam para acumular provisões em seu formigueiro. No inverno, desamparada, a cigarra faminta pede-lhes um pouco dos grãos que punham a secar; perguntada sobre o que a fizera durante todo o verão, responde que não tivera tempo para juntar comida pois "cantara melodiosamente", ao que as formigas retrucam que se cantara no verão, que dançasse no inverno. Segundo a tradução brasileira de Neide Smolka traz como corolário a lição de que "não se deve negligenciar em nenhum trabalho, para evitar tristezas e perigos".[2]

A mesma história foi então recontada por Jean de La Fontaine, procurando atualizar as fábulas de Esopo e ainda criando as suas próprias; em sua versão ele acentua que a formiga consegue acumular porque "nunca empresta nada a ninguém".[2]

Tradução de Bocage

Versão com o gafanhoto e a formiga (Projeto Gutenberg)

O poeta Bocage traduziu para o idioma português a versão escrita por La Fontaine[3] (em domínio público):

Tendo a cigarra em cantigas
Passado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brilho,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
- "Amiga", diz a cigarra,
- "Prometo, à fé d'animal,
Pagar-vos antes d'agosto
Os juros e o principal."
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
- "No verão em que lidavas?"
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: - "Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora."
- "Oh! bravo!", torna a formiga.
- "Cantavas? Pois dança agora!"

Contexto histórico, interpretação e re-interpretações

Se a lição que esta fábula procura passar é o da previdência, ela contudo pode ser reinterpretada - algo que o próprio Monteiro Lobato procurou fazer ao colocar na sua obra a figura irreverente da boneca Emília que contestava as lições finais; a sociedade contemporânea pode rever estes valores, e ainda debater em que medida ainda seriam válidos; no exemplo da fábula da cigarra com a formiga pode-se contestar se ela não traz embutida os valores da sociedade aristocrática do século XVII em que foi escrita como, no caso, a exaltação à acumulação de bens, que são valores burgueses do capitalismo.[1]

Ao longo do tempo a história sofreu releituras por vários escritores, humoristas, teatrólogos e outros artistas (no Brasil pode-se citar Jô Soares e Millôr Fernandes).[1] Mesmo na propaganda a fábula é utilizada, como uma peça publicitária espanhola que, valendo-se de que a história já integra o inconsciente coletivo, reconta a fábula de modo a traduzir o objetivo de vender um produto; no caso em análise a formiga "esperta" trabalhou durante o verão, mas também o desfrutou porque fez um plano de pensão.[4]

De 1989 são os versos do poeta brasileiro José Paulo Paes que leva a uma outra conclusão para a fábula:[2]

"Mas sem a cantiga
Da cigarra
Que distrai da fadiga,
Seria uma barra
O trabalho da formiga!"

Releitura de Monteiro Lobato

Em sua obra Fábulas de 1922, o escritor brasileiro Monteiro Lobato coloca na boca de sua personagem Dona Benta a narrativa da história e, embora com o mesmo triste desfecho para o destino da cigarra, promove uma crítica ao papel da formiga, levando o leitor a refletir sobre a conduta desta última e a tomar uma posição favorável ao inseto cantor.[5]

Desta forma Lobato se refere ao inseto pedinte: "Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé do formigueiro. Só parava quando cansadinha (...)", pois era uma "pobre cigarra, em seu galhinho, manquitolando, com uma asa a arrastar, triste mendiga, a tossir", ao passo que a formiga assume um papel de algoz e "Não soube compreender a cigarra, com dureza a repeliu de sua porta" pois ela "era uma usurária sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres".[5]

Conclui Lobato assim a história: "Resultado: a cigarra ali morreu entanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste. É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?", desta forma valorizando os artistas, tais como os poetas, músicos e pintores — cigarras da vida real.[5]

Cabe à neta da narradora, a menina Narizinho, o papel de defender a formiga: "Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. Vovó nos leu aquele livro do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve".[5][nota 1]

Adaptações

Entre diversas outras versões, a fábula foi transposta para o cinema num curta-metragem da Disney, The Ant and the Grasshopper (1934. Parte da série Silly Symphonies, a animação contava com a canção The world owes me a living, composta por Leigh Harline e Larry Morey.[7]

No Brasil, esta história e as demais histórias de Esopo e La Fontaine foram recontadas, no contexto do Sítio do Picapau Amarelo, pelo escritor Monteiro Lobato, emprestando-lhes um contexto mais afeito à realidade do país, em sua obra Fábulas.[1] O espanhol Félix María Samaniego também incluiu uma versão da história em suas Fábulas morales, de 1784.[8] A história foi também uma das adaptadas por Radamés Gnatalli para a Coleção Disquinho, na década de 1940.[9]

Notas e referências

Notas

  1. Lobato se refere ao livro de Maurice Maeterlinck "La Vie des Fourmis" (A Vida das Formigas, de 1930), obra pela qual o autor fora acusado de plágio da obra The Soul of the White Ant do naturalista e escritor sul-africano Eugène Marais, publicada originalmente em revistas ao longo dos primeiros anos da década de 1920.[6]

    Referências

    1. Marcos Bagno (abril de 2002). «Fábulas fabulosas» (PDF). Práticas de Leitura e Escrita, projeto Salto para o futuro. Consultado em 28 de outubro de 2016
    2. Silvana Cristina Bergamo Pereira (25 de fevereiro de 2008). «Sequência Didática» (PDF). Esopo tradução de Neide Smolka. São Paulo, Moderna, 1994.
      Fábulas de La Fontaine. Rio de Janeiro: Matos Peixoto, 1965. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Consultado em 5 de abril de 2017. Cópia arquivada (PDF) em 5 de abril de 2017
    3. PAIS, Carlos Castilho. Bocage, tradutor. Instituto Camões
    4. Antonio Mendoza Fillola (2010). «Función de la literatura infantil e juvenil em la formación de la competencia literaria» (PDF). Biblioteca Virtual Universal. Consultado em 28 de outubro de 2016
    5. Alice Áurea Penteado Martha (1999). «Monteiro Lobato e a fábula vestida à nacional» (PDF). Mimesis, Bauru, v. 20, n. 2, 71-81. Consultado em 5 de abril de 2017
    6. David E. Bignell (21 de outubro de 2003). «TERMITES: 3000 VARIATIONS ON A SINGLE THEME». Biology. Consultado em 5 de abril de 2017. Arquivado do original em 27 de agosto de 2007
    7. HISCHAK, Thomas S.; ROBINSON, Mark A. The Disney Song Encyclopedia. Scarecrow Press, 2009. Pág. 134 (em inglês)
    8. Institucional. «Félix María Samaniego». Biografias y Vidas. Consultado em 28 de outubro de 2016. Cópia arquivada em 24 de junho de 2013 (em castelhano)
    9. Gravadora relança histórias infantis de Braguinha. O Estado de S.Paulo, 3 de Outubro de 2001

    Ligações externas

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