Combateremos a Sombra

Combateremos a Sombra é um romance da escritora portuguesa Lídia Jorge que foi publicado em 2007 pelas Publicações Dom Quixote.

Combateremos a Sombra
Autor(es) Lídia Jorge
Idioma português
País Portugal
Assunto psicanálise, tráfico de droga
Gênero romance
Linha temporal 2000-01
Editora Dom Quixote
Formato capa mole
Lançamento 2007
Páginas 482
ISBN 978-972-20-2975-9
Cronologia
O Vento Assobiando nas Gruas
A Noite das Mulheres Cantoras

A acção decorre principalmente em Lisboa, tendo início precisamente no último dia de 2000, ou seja, na passagem do segundo para o terceiro milénio d.C., e no ano seguinte.[1] A noite da passagem do Milénio irá mudar a vida de Osvaldo Campos, psicanalista, que se define como um simples decifrador de histórias. À volta dele, a realidade começa a mudar, tal como as histórias que os pacientes dele lhe contam no silêncio do seu gabinete. Naquela noite ele separa-se da esposa, vai ter um encontro ainda que fortuito com outra mulher, e a sua "paciente magnífica", a "visita da noite", prepara-se para lhe revelar um segredo que o colocará perante de uma realidade clandestina com repercussões incalculáveis.[2]

Romance perturbador que mergulha o leitor na vida interior do psicanalista Osvaldo que se vê confrontado com uma trama que na sombra o ultrapassa. A romancista, que sempre nos mostrou que não há nada mais real que o onírico e nada mais fantástico que o real, revela essa tensão psicológica que se avoluma. O título não é uma incitação à luta contra as sombras da sociedade moderna, mas a constatação da ironia da dificuldade de atingir os perpetradores do mal e de apenas se poder combater a sua sombra. Os crimes subjacentes a este romance são um dos elementos do grande embuste que perpassa pelas nossas sociedades a que o psicanalista chega com a interpretação dos sonhos de uma paciente. É um romance sobre o risco de viver para as pessoas comuns em face do mundo totalitário que a modernidade está a criar.[2]

Título

Em Cadernos de Lanzarote II, José Saramago descrevendo uma ida a Praga dá conta que Lídia Jorge estava a escrever um romance cujo título era O Homem do Poente. Saramago e a comitiva, considerando-o fraco (sic), pediram-lhe outro título, a que a autora, inicialmente hesitante, referiu que pensara em Combateremos a Sombra, mas que o tinha posto de parte. Passados treze anos, surgiu ao público com todas as honras que merecem as grandes obras.[3]

O titulo do livro evoca um episódio narrado pelo historiador Heródoto (século V a.C.). O imperador persa Xerxes I, à frente de um exército de cerca de 250 000 soldados, invadiu a Grécia por volta de 480 a.C., deparando-se nas Termópilas com um exército de 7 000 gregos e de 300 espartanos sob o comando de Leónidas I. Face à desproporção de forças, Xerxes enviou um mensageiro aos gregos exigindo a sua rendição, avisando que os arqueiros persas eram tantos que ao dispararem as suas flechas tapariam o Sol deixando tudo na sombra. A exiguidade de meios não demoveu Leónidas que respondeu que os persas poderiam iniciar o combate que os espartanos combateriam à sombra. Talvez a Autora de Combateremos a Sombra quisesse emular simbolicamente o personagem principal, Osvaldo Campos, com a figura de Leónidas, pelo seu destemor, a sua audácia e a sua intrepidez.[3]

Resumo

Ao longo de três meses, Osvaldo Campos, psicanalista, professor universitário, cidadão atípico, emotivo, solidário e experimental, algo instável, em luta constante contra o tempo, rico de palavras e silêncios, vai confrontando o mundo sombreado dos seus pacientes, ao mesmo tempo que se debate com êxito com a sua ruptura conjugal.[3]

Com laivos de texto kafkiano, é-nos revelado o universo dos pacientes de Osvaldo. Como se fora um diário, o narrador vai fornecendo, espaçadamente, dados que permitem compreender a vida de cada uma das personagens. A realidade contamina a ficção. À medida que a história avança, qual thriller, diminui a ambiguidade e aumenta o entendimento.[3]

No consultório, que se transforma depois em local de habitação, Osvaldo tem o apoio crítico da secretária Ana Fausta. Os pacientes são de índole variada, alguns pagantes, muitos a título gracioso: o jornalista Elísio Passos; o general Ortiz; o jardineiro Lázaro Catembe, e Maria London, a sua "paciente magnífica", a que lhe permite pôr à prova toda a sua capacidade médica, e equilibrar as finanças.[3]

Num mundo em declínio, de muitos a viverem na sombra, carentes de meios, tentando sarar feridas de há muito herdadas, buscam na psicanálise a ajuda de que necessitam. Um texto retratando a contemporaneidade, onde a utopia é uma das características de um médico que não regateia preços, que com generosidade trata todos, os que podem e os que não podem pagar.[3]

Maria London, a paciente preferida, é a que lhe ocupa mais tempo e a que lhe dá mais preocupação. Os seus elaborados sonhos envolvem um enigma que o psicanalista é levado a decifrar, completando o que não é dito, descodificando o que fica por dizer e o que é feito, nem que para isso, contrariando as regras médicas, tente comprovar o que é feito, certificar o que é afirmado. Mas é no silêncio, na introspecção e na reflexão que Osvaldo descodifica os sonhos da sua paciente. Maria London, qual Ariadne, irá enlear o psicanalista numa teia que pretende aclarar.[3]

O mistério, o dinheiro que perverte e suja entram na vida de Osvaldo Campos que há muito deixou de ser um homem só. A literatura policial a irromper num texto que se adivinhava, unicamente, de costumes. A surpresa a enriquecer e a inovar o romance em língua portuguesa.[3]

Rossiana, a que apareceu na escuridão, de vida sofrida, que está escondida num apartamento no prédio do consultório, entra na vida de Osvaldo, sendo na Casa da Praia, a sul de Lisboa, que se dará o encontro adiado. Vítima de uma teia que Osvaldo tenta deslindar, verá nele o refúgio e o alento de um homem que augura um futuro que dificilmente alcançarão.[3]

Apreciação crítica

Para João Cabrita, Combateremos a Sombra é um livro novo, do nosso tempo, com uma história do que acontece no nosso quotidiano. Começa por fazer apelo à memória, para depois ir desenvolvendo uma trama que nos vai preocupando e está dentro da nossa vivência.[3]

Prossegue João Cabrita, que o personagem principal quer descodificar a teia que o envolve, pretende ir mais além da cura da paciente, mas quem se movimenta na sombra é mais forte, o embuste, a desonra, a impunidade campeiam e dominam. O personagem principal é movido pela disposição de bem fazer, com alguma ingenuidade e romantismo, mas soçobra ao melhorar a existência difícil de Rossiana, numa relação onde o amor vence as distâncias.[3]

Para Gabriela Silva, a escolha de um protagonista psicanalista é justamente o que torna o romance de Lídia Jorge tão complexo e tão profundo. O silêncio é o espaço em que se ocultam as palavras e segredos não ditos, mas rastreados nas falas e sonhos dos seus pacientes. Nas leituras de cada paciente estão os dramas e as necessidades de muitos indivíduos portugueses. A autora traça, como não poderia deixar de fazê-lo, o mapeamento de diversos comportamentos identificados no quotidiano português. A violência e o medo ocultos em uma realidade. Desvelados e identificados, esses dramas tomam os capítulos de Combateremos a Sombra.[4]

Para Cândido Martins, o romance de Lídia Jorge proporciona uma reflexão sobre a dialéctica entre a escrita (ou a voz) e o silêncio contra a hipercultura da pressa e do ruído, típica de uma acelerada “cultura da comunicação”. No passado, como no presente, a literatura sempre se constituiu como uma forma ímpar e indispensável de dizer o indizível e de expressar o silêncio; e até de decifrar os silêncios legalizados pelas sociedades democráticas. Por outras palavras, a abordagem do tema em questão pressupõe o questionamento do tema da linguagem e da in-comunicabilidade – entre outros tópicos –, pois a palavra é, e sempre foi, uma forma de poder, com mais ou menos constrangimentos.[5]

Prossegue Cândido Martins equacionando se, num mundo doente de várias patologias, pode a verbalização, por exemplo, através da psicanálise, constituir uma forma de libertação terapêutica? No plano individual e colectivo, o conhecimento do mundo, a autognose e a própria busca de sentido para a existência humana são indissociáveis da palavra, da linguagem e da narrativa. Mesmo salvaguardando certos mistérios indecifráveis da mente humana; ou os excessos entre o mutismo e a verbosidade.[5]

Conclui Cândido Martins que, como nos adverte Boaventura Sousa Santos, o retorno ao interior do ser humano, à redescoberta do indivíduo e à centralidade do mundo interior, pode ser visto como um dos traços da sociedade pós-moderna. Aliás, não será por acaso que certa narrativa literária actual volta a explorar diversos meandros do mundo labiríntico da psicologia humana. Por vezes, fá-lo com grande realismo e redescobrindo com isso dimensões trágicas da existência humana. Mas essa é uma das potencialidades da palavra literária – iluminar as sombras e o obscuro, problematizar a verdade, saber quanto pesa a alma, combater a inevitabilidade do silenciamento.[5]

Para Isabel Cristina Rodrigues, logo no início do romance, a exposição do caso de Lázaro Catembe constitue uma súmula de toda a narrativa, propondo-se a autora investir em algo mais do que a ficção específica do romance, tal como o protagonista, Osvaldo Campos, procura esclarecer para os seus pacientes não apenas a treva momentânea em que se encontram, mas a origem dessa cegueira que os atinge: «O seu trabalho dirigia-se à origem daquela cegueira e não à circunstância precisa em que o paciente tropeçava na zona da treva. A sua função não se exercia na área dos sintomas concretos, dirigia-se ao fundo das suas causas para promover a rebelião contra elas» (p. 20).[6]

Isabel Cristina Rodrigues refere também que a visita que Osvaldo Campos recebe na noite do milénio, e a metáfora de Elísio Passos de uma bizarra cesta de ovos envenenados («talvez o senhor não saiba que Salazar tinha um galinheiro em São Bento…», p. 37), consubstancia um gesto psicanalítico que a Autora dirige à alma portuguesa, como que a pesá-la ao mesmo tempo que a reclina no divã, juntamente com os outros pacientes do psicanalista. O Portugal de Combateremos a Sombra é um país desencantado, com pontes em queda e gentes desesperançadas, um país da desonra e do embuste, da impunidade e do silêncio.[6]

Isabel Cristina Rodrigues refere ainda que sendo as referências aos fundamentos e processos da psicanálise relativamente escassas, Combateremos a Sombra possibilita uma reflexão sobre o que poderemos chamar o poder e os constrangimentos da palavra, na sua capacidade de análise – a fala, o silêncio, o silenciamento e o vazio ocasional da voz, de que é exemplo o discurso oco do "sábio" Silvestre Conde (p. 355-366). Esta reflexão parte de um artigo científico que Osvaldo Campos termina na marcante noite da passagem do milénio, noite da ruptura com a mulher e da estranha visita de Elísio Passos, com o seu delírio de ovos envenenados. Com o título Quanto pesa uma alma? Responde um Prático, o artigo reduz o peso da alma humana à fala que ela produz, estabelecendo um curioso paralelo entre a dizibilidade do espírito e o peso que ele comporta: «a alma pesa o peso do Universo e o peso da sua ausência. A leveza da sua alegria e o peso da sua dor. Pesa o que pesa a consciência de si, quando se narra. […] A alma é uma narrativa acumulada, enquanto se possui uma língua que a fala» (p. 27).[6]

Ainda para Isabel Cristina Rodrigues, Combateremos a Sombra discorre também sobre as virtualidades terapêuticas da fala, aplicando a metáfora do bisturi («a fala como sonda. Fazer da fala um bisturi e ir lá», p. 445), sendo ainda um romance sobre o silêncio que se impõe sobre algumas destas almas: a de Maria London, disfarçando a sua denúncia através da fantasia, e a de Osvaldo Campos que mais tarde decidiu transformar a sua habitual actividade de ouvir num explícito discurso da denúncia.[6]

Conclui Isabel Cristina Rodrigues que Lídia Jorge atinge com este romance um extraordinário «TUDO O QUE VOA», isto é, «consegue trazer o que está no interior das coisas para fora das coisas» (p. 294), utilizando palavras em vez de imagens fotográficas, sendo a própria autora fiel aos ensinamentos de uma personagem: «para que se perceba que voa, tem de ter à mostra o local de onde parte. […] Daqui de onde estamos, todos vemos como a vizinha tem um vaso com uma azálea à janela. Se só fotografarem a azálea, é uma merda de usar em todos os lugares, até numa estufa de flores, não vale a pena. Mas se a azálea tiver junto dela o cortinado puído da janela da vizinha, a azálea voa, a azálea diz – Porra, eu sou a harmonia no meio das coisas rotas e puídas, eu voo» (p. 288). E o romance de Lídia Jorge deixa bem explícito o lugar de onde parte para o voo da ficção, parte de um país doente do seu próprio veneno, puído como a cortina da vizinha e onde pontua, no aqui e ali de certas almas (Osvaldo, Rossiana), o balançar colorido de uma azálea.[6]

Prémio Charles Brisset 2008

Combateremos a Sombra foi distinguido com o Prémio Charles Brisset 2008 atribuído pela Associação Francesa de Psiquiatria,[7][8] tendo sido o primeiro romance português a receber este prémio, que tem sido atribuído desde 1987 e que distingue obras que, pela sua qualidade, "evocam e aprofundam a problemática humana e que respeitem a verdade dessa problemática". O Prémio tem o nome do médico psiquiatra Charles Brisset que foi o fundador da Associação Francesa de Psiquiatria.[7]

Para o jornal Público, Lídia Jorge considerou ter sido uma surpresa enorme o recebimento do Prémio e que lhe "agradou bastante a distinção porque concilia méritos literários com exactidão médica, o que foi positivo, pois estava com receio de ter elementos pouco exactos em termos médicos no livro". Ainda para a Autora, este prémio é atribuído a "quem através da literatura consiga penetrar nos sentidos humanos" e que não escreveu "propriamente sobre uma doença do foro mental", mas que reconheceu que "mergulhou muito" no seu interior, além de ter observado o "silenciamento feroz de elementos exteriores". Referiu ainda que "Vivemos tempos de grande solidão e é curioso que em França, ao contrário de Portugal, tenham descrito o livro como uma metáfora contemporânea das sociedades modernas".[7]

Na edição francesa, pelas Éditions Métailié, o romance foi publicado com o título Nous Combattrons l'Ombre.[7]

Referências

  1. Lídia Jorge, Combateremos a Sombra, Publicações Dom Quixote, 2007, IBSN 978-972-20-2975-9
  2. Apresentação do livro Combateremos a Sombra na página web da editora francesa Métailie
  3. João Cabrita, "Falando de… Combateremos a Sombra, de Lídia Jorge", em Jornal do Nordeste,
  4. Gabriela Silva, "Incômoda memória", Jornal Rascunho, nº 179, Abril de 2016,
  5. Cândido Martins, Prefácio a Conceição S. Brandão, Formas de Silêncio em "Combateremos a Sombra", de Lídia Jorge, Editorial Novembro, 2014,
  6. Isabel Cristina Rodrigues, publicado em 18.5.2008 na secção Recensões Críticas, na página web da Fundação Calouste Gulbenkian,
  7. Público (jornal), 13.03.2009,
  8. Laureados do prémio Charles Brisset na página web www.fracademic.com
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