Tragédie en musique

Designa-se tragédie en musique (ou «tragédie lyrique», podendo surgir traduzido para português como "tragédia musical" ou "tragédia lírica") o género musical especificamente francês, em uso nos séculos XVII e XVIII, e cujas obras eram principalmente representadas no palco da Académie royale de musique de Paris, difundindo-se depois por outras cidades francesas e estrangeiras.

Definição

Espécie de poema dramático feito para ser posto em música, e cantado no teatro com a sinfonia e todo o tipo de decorações em máquinas e vestidos. La Bruyère diz que a ópera deve conter o espírito, os ouvidos e os olhos numa espécie de encantamento: e Saint-Évremont chama à ópera quimérica montagem de poesia e música, onde o poeta e o músico se torturam mutuamente.
Definição de ópera, por Louis de Jaucourt, na Encyclopédie.[1]

O termo ópera não é apropriado para designar este género no qual o criador, Jean-Baptiste Lully, quis precisamente desmarcar-se da ópera italiana, então em voga no resto da Europa, apesar das suas próprias origens italianas, ou talvez por causa disso. A «tragédie en musique» é resultante de uma fusão de elementos do ballet de Cour, da pastoral, da «pièce à machines» e da comédie e tragédie-ballet. Os seus criadores — o compositor Lully e o seu libretista Philippe Quinault— ambicionavam fazer dela um género tão prestigioso como a tragédia clássica de Corneille e Racine: como exemplo deste último, a "tragédie" é estruturada em cinco atos.

A ópera italiana (em três atos) tendia a valorizar a música, e sobretudo o canto solista (o «bel canto») enquanto a «tragédie lyrique» era concebida como um espectáculo completo que queria colocar em igualdade o conjunto dos seus componentes: o texto (em verso), a encenação, o vestuário, a música, a dança, as «machines», a iluminação, etc.

A intriga da «tragédie lyrique» baseia-se na maioria das vezes na mitología e lendas (sobretudo greco-latinas), mas explora também os poemas épicos do Renascimento na senda do Orlando Furioso, de Jerusalém Libertada, etc. Os amores infelizes ou contrariados são a base habitual dos libretistas. O «merveilleux» (maravilhoso) é um elemento fundamental, permitindo, em maior benefício do espetáculo mas não da verosimilhança, multiplicar os efeitos de maquinaria para por em cena deuses e heróis, monstros e fenómenos naturais (descida dos céus de Júpiter, queda de Faeton, descida aos Infernos, tremores de terra, etc.). Tal aproxima-a da ópera italiana contemporânea; mas, distintamente desta, a intriga deve igualmente reservar um importante lugar à dança, com cenas de festas, festejos e alegria dispostas a propósito. Os principais intérpretes tinham de saber cantar e dançar.

A «tragédie lyrique» compreendia, em geral:

  • uma «ouverture» instrumental solene.
  • um prólogo que introduzia a ação por uma alusão alegórica aos méritos e atos elevados do soberano: este prólogo tem a mesma estrutura que os atos principais; desapareceu nas últimas obras de Rameau.
  • cinco atos que misturam árias solistas, coros, recitativos e intermezzos instrumentais com danças. Isto distingue-a também da ópera italiana, geralmente em três atos.
  • uma ária instrumental conclusiva, chacona ou passacaglia ou várias danças curtas, encadeadas uma após outra.

Em algumas obras, uma passacaglia de grandes proporções era inserida num dos atos, em função das possibilidades do libreto. É o caso da passacaglia de Armide, de Lully, considerada no seu tempo como a obra-prima do género, com a sua extraordinária sucessão de variações instrumentais ou corais.

A música vocal da «tragédie en musique» difere profundamente da da ópera italiana contemporânea pelos seguintes aspetos:

  • importância dada aos coros, constituídos pelas personagens secundárias.
  • relativa raridade de árias de solistas, que deixam uma parte muito mais reduzida ao virtuosismo e aos efeitos vocais: o texto deve ser compreendido pelo espectador.
  • recitativo mais cantável.

Efetivamente, a prosódia da língua francesa conduz o recitativo a distinguir-se do «recitativo secco» quase falado da ópera italiana. A «mélodie» é mais marcada, conferindo à «tragédie lyrique» uma certa continuidade da qual se disse que prefigurava a melodia contínua da ópera wagneriana.

A sorte da «tragédie en musique»

Depois de Cadmus et Hermione em 1673, Lully compôs uma «tragédie lyrique» por ano, até à sua morte (deixou Achille et Polexène inacabada).

O género teve o favor do rei, e, depois do desaparecimento do "Surintendant", o de numerosos compositores de finais do século XVII e início do XVIII. Permanece no entanto exclusivamente francês, mesmo que alguns dos seus componentes tenham encontrado eco no estrangeiro — e notavelmente a famosa «ouverture à la française» adotada por Purcell, Haendel, Bach e outros.

A morte de Luís XIV levou o género a ficar um pouco isolado: a Régence viu florescer formas mais joviais, menos solenes, menos afetadas, como a opéra-ballet e as pastorais.

Estava já antiquada, quando Rameau, génio tardío e solitário, voltou a dar-lhe brilho, enquanto se preparava a confrontação com a ópera italiana da qual a Querelle des Bouffons seria a manifestação tangível. A moda é de mais simplicidade, de naturalidade. Rameau, enbora tenha conservado os elementos introduzidos por Lully, renovou completamente o estilo musical: foi assim, paradoxalmente, criticado tanto por aqueles seus contemporâneos que consideravam a «tragédie lyrique» como um género antiquado, como pelos que reprovavam a grande modernidade da sua linguagem musical. O confronto da «tragédie lyrique» com a opéra-bouffe foi a questão de partida da «Querelle des Bouffons» da qual será um dos principais protagonistas.

A qualidade excecional da música composta por Rameau não pôde impedir que a «tragédie lyrique» voltasse a cair em desuso, embora a sua última obra, Les Boréades, estivesse em ensaio quando aconteceu, em setembro de 1764 a morte do grande compositor. Este canto de cisne não foi representado e a «tragédie en musique», espectáculo completo e a forma mais acabada e simbólica da música francesa, torna-se simplesmente tema de estudo dos historiadores da música, desaparecendo do repertório durante dois séculos sem que ninguém pudesse prever que sairia um dia do purgatório.

Numa Histoire de la musique editada em 1969 e reimpressa em 1985, Lucien Rebatet, profeta pouco inspirado, escreveu:

Quelle est réellement la valeur musicale de cette tragédie lullyste ? Nous ne pouvons guère la juger que sur lecture, ou sur des restitutions mentales à partir des fragments connus. Elle n'a plus guère de chances de reparaître au répertoire dont elle est sortie depuis si longtemps, et on ne l'a honorée en France d'aucune édition phonographique, comme les Anglais l'ont fait pour des ouvrages de Purcell dont la représentation scénique est non moins impossible.

Pelo contrario, desde a década de 1970, não apenas algumas destas obras foram apresentadas em concerto, gravadas, representadas em favor do movimento pela música antiga, mas também voltaram a ter franco êxito. As cinco tragédias de Rameau foram gravadas (em CD) uma ou mais vezes. E nove mais das Lully, seguramente as mais estereotipadas, também. O mesmo sucede com outros compositores, como André Campra, Marin Marais, Jean-Marie Leclair, Marc-Antoine Charpentier ou Jean-Joseph Mouret.

Principais «Tragédie en musique»

Cronologia das principais «Tragédie en musique» (1673-1740)
Data Obra Compositor
1673Cadmus et HermioneJean-Baptiste Lully
1674AlcesteJean-Baptiste Lully
1675ThéséeJean-Baptiste Lully
1676AtysJean-Baptiste Lully
1677IsisJean-Baptiste Lully
1678PsychéJean-Baptiste Lully
1679BellérophonJean-Baptiste Lully
1680ProserpineJean-Baptiste Lully
1682PerséeJean-Baptiste Lully
1683PhaëtonJean-Baptiste Lully
1684AmadisJean-Baptiste Lully
1685RolandJean-Baptiste Lully
1686ArmideJean-Baptiste Lully
1687Achille et PolyxèneJean-Baptiste Lully, terminada por Pascal Collasse.
1689Thétis et PeléePascal Collasse
1691Énée et LaviniePascal Collasse
1691AstréePascal Collasse
1693MédéeMarc-Antoine Charpentier
1693AlcideMarin Marais em colaboração com Louis Lully
1693Didon Henry Desmarest
1694CircéHenry Desmarest
1694Céphale et ProcrisÉlisabeth Jacquet de la Guerre
1695Théagène et CharicléeHenry Desmarest
1696Ariane et BacchusMarin Marais
1696Jason ou la Toison d’orPascal Collasse
1697Vénus et AdonisHenry Desmarest
1699Amadis de GrèceAndré-Cardinal Destouches
1699Marthésie, reine des AmazonesAndré-Cardinal Destouches
1700HésioneAndré Campra
1700CanentePascal Collasse
1701OmphaleAndré-Cardinal Destouches
1702TancrèdeAndré Campra
1703UlysseJean-Féry Rebel
1704Iphigénie en TaurideHenry Desmarest
1705AlcineAndré Campra
1706Polyxène et PirrhusPascal Collasse
1706AlcyoneMarin Marais
1709SéméléMarin Marais
1712CallirhoéAndré-Cardinal Destouches
1712IdoménéeAndré Campra
1714AriónJean-Baptiste Matho
1714Télémaque et CalypsoAndré-Cardinal Destouches
1717Ariane et ThéséeJean-Joseph Mouret
1718SémiramisAndré-Cardinal Destouches
1722Renaud ou la suite d'ArmideHenry Desmarest
1723PirithoüsJean-Joseph Mouret
1733-34Hippolyte et AricieJean-Philippe Rameau
1737Castor et PolluxJean-Philippe Rameau
1739DardanusJean-Philippe Rameau
1746Scylla et GlaucosJean-Marie Leclair
1749ZoroastreJean-Philippe Rameau
1763Les BoréadesJean-Philippe Rameau

Referências

  1. Espèce de poëme dramatique fait pour être mis en musique, & chanté sur le théâtre avec la symphonie, & toutes sortes de décorations en machines & en habits. La Bruyère diz que a ópera deve ter o espírito, os ouvidos e os olhos numa espécie de encantamento: e Saint-Évremont chama a ópera uma quimérica montagem de poesia e música, onde o poeta e o músico se torturam mutuamente.

Ver também

This article is issued from Wikipedia. The text is licensed under Creative Commons - Attribution - Sharealike. Additional terms may apply for the media files.