Desenvolvimento da doutrina

O desenvolvimento da doutrina (ou desenvolvimento do dogma) é um termo usado pelo cardeal católico e santo John Henry Newman e por outros teólogos influenciados por ele para descrever a forma como a doutrina católica se tornou cada vez mais detalhada e explícita ao longo dos séculos, enquanto que as declarações doutrinais posteriores continuem a permanecer coerentes com as afirmações anteriores.

Teologia de Newman

O Cardeal Newman reflectiu e estudou muito sobre o desenvolvimento da Doutrina (ou o desenvolvimento do Dogma).[1][2]

O termo foi introduzido no livro Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, escrita por Newman em 1845. Neste livro, Newman usou a idéia do desenvolvimento da doutrina para defender a doutrina católica de ataques e críticas feitas por alguns anglicanos e protestantes, que achavam que alguns elementos da doutrina católica eram corrupções ou inovações contrárias aos ensinamentos de Jesus Cristo. Ele baseou-se num extenso estudo dos Padres da Igreja na elaboração da sua teoria de que a ideia do desenvolvimento da doutrina já estava implicitamente presente na Bíblia e na Tradição católica, desde os primórdios da Igreja cristã. Famosa é a sua declaração de pesquisa sobre as origens da doutrina católica:

Confiando então no poder do cristianismo para resistir à infecção do mal, e para transmutar os próprios instrumentos e acessórios da demonolatria para um uso evangélico, e sentindo também que estas práticas tinham origem em revelações primitivas e no instinto da natureza, ainda que estivessem corrompidas; e que tinham que inventar o que precisavam, se não usassem o que acharem; e que, além disso, possuíam os próprios arquétipos, dos quais o paganismo tentou as sombras; os líderes da Igreja, desde os tempos primitivos, estavam preparados, se surgisse a ocasião, para adotar, ou imitar, ou sancionar os existentes ritos e costumes da população, bem como a filosofia da classe instruída. [...] Constantino, com o fim de recomendar a nova religião [católica romana] aos pagãos, transferiu para ela os ornamentos externos aos quais eles estavam acostumados. [...] O emprego de templos, e estes dedicados a certos santos, e enfeitados em ocasiões com ramos de árvores; incenso, lâmpadas e velas; promessas para cura de doenças; água benta; asilos; dias santos e estações, uso de calendários, procissões, bênçãos dos campos, vestimentas sacerdotais, a tonsura, o anel nos casamentos, o virar-se para o Oriente, imagens numa data ulterior, talvez o cantochão e o Kyrie Eleison, são todos de origem pagã e santificados pela sua adoção na Igreja.
Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã; págs. 371-373, edição de 1878.

No volume 2 do livro Essays Critical and Historical, o cardeal John Henry Newman expôs mais uma vez a sua tese sobre a origem de muitos ensinamentos cristãos, dizendo:

O fenómeno, admitido por todos os lados, é o seguinte: — Que grande parte do que em geral é recebido como verdade cristã, são encontrados os seus rudimentos ou as suas partes separadas nas filosofias e religiões pagãs. Por exemplo, a doutrina duma Trindade é encontrada tanto no Oriente como no Ocidente; assim como a cerimónia da ablução; assim como o rito do sacrifício. A doutrina do Verbo Divino é platónica; a doutrina da Encarnação é indiana; a de um reino divino é judaica; a de Anjos e demónios é dos magos; a ligação do pecado com o corpo é gnóstica, o celibato é conhecido pelos monges budistas; a ordem sacerdotal é egípcia; a ideia de um novo nascimento é chinês e eleusino; a crença na virtude sacramental é de Pitágoras; e a honra aos mortos é politeísta. Tal é a natureza geral do fato antes de nós; o Sr. Milman argumenta a partir dele, - "Essas coisas existem no paganismo, portanto não são cristãs:" nós, pelo contrário, preferimos dizer: "estas coisas existem no cristianismo, portanto não são pagãs." Ou seja, nós preferimos dizer, e nós pensamos que a Escritura dá-nos em dizer, que desde o início, o Governador Moral do mundo espalhou as sementes da verdade em toda a parte; que estas criaram raízes de diversas formas, e crescido como na selva, plantas selvagens mas na verdade vivendo; e portanto que, tal como os animais inferiores têm um princípio imaterial neles, contudo não têm almas, assim as filosofias e religiões dos homens têm a sua vida em certas ideias verdadeiras, embora elas não são diretamente divinas. Qual o homem no meio da criação bruta, tal é a Igreja entre as escolas do mundo, e como Adão deu nome aos animais sobre ele, assim a Igreja primitiva olhou em volta sobre a terra, observando e visitando as doutrinas que ela encontrou lá. [...] Onde quer que fosse, com problemas ou em triunfo, ainda assim ela [a Igreja] era um espírito vivo, a mente e a voz do Altíssimo; "sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os"; reivindicando para si o que eles disseram justamente, corrigindo seus erros, [...] expandindo suas conjeturas e, assim, gradualmente, por meio deles, ampliando o alcance e refinamento do senso de seu próprio ensino. [...] Até que ponto, na verdade, este processo tem ido, é uma questão de história; e nós acreditamos que até agora tem sido grosseiramente exagerado e mal representado por aqueles que, como o Sr. Milman, têm pensado que a sua existência é contra a doutrina católica. [...] Nós não estamos aflitos por nos ter contado que a doutrina da hoste angélica veio da Babilónia, enquanto que nós sabemos que eles cantaram mesmo no Natal; nem que a visão de um Mediador está em Fílon, se deveras Ele morreu por nós no Calvário. [...] Dizemos que ela [a doutrina católica] nunca pode estar corrompida. Consideramos que uma promessa divina mantém a Igreja Católica da corrupção doutrinária.
Essays Critical and Historical, volume 2: Milman's view of Christianity; págs. 231-234

O cardeal Newman argumentou também que várias doutrinas católicas rejeitadas pelos protestantes (tais como a hiperdulia ou o purgatório) tinham uma história de desenvolvimento análoga às doutrinas que foram aceites pelos protestantes (tais como a Santíssima Trindade ou a união hipostática de Cristo). Este desenvolvimento foi, em sua opinião, as consequências naturais e benéficas do estudo e reflexão da razão humana sobre a Revelação divina, que é imutável. Ele defendia que este estudo teológico levaria a Igreja Católica a aperceber progressivamente de certas realidades reveladas que antes não tinha compreendido explícita e totalmente.[3][2]

Posição oficial da Igreja Católica

O Magistério da Igreja Católica ensina que, "apesar de a Revelação já estar completa, ainda não está plenamente explicitada. E está reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance, no decorrer dos séculos". [4] Isto quer dizer que a Igreja Católica aceita e subscreve a tese de Newman sobre o desenvolvimento da doutrina. Por isso, ela admite a clarificação e o desenvolvimento progressivo da sua doutrina, bem como os costumes e a expressão da dos seus fiéis, ao longo dos séculos. Mas, nunca se deve confundir a interpretação gradual da Revelação (que resulta depois na formulação e no desenvolvimento doutrinal) e a matéria da própria Revelação divina (ou depósito de fé), que é inalterável e imutável. Por outras palavras, o Magistério da Igreja, ao meditar e estudar a Revelação imutável, aperceberá progressivamente de certas realidades que antes não tinha compreendido explicitamente.[3][2]

Este entendimento progressivo, que não adiciona nada à Revelação em si, é designado por "crescimento na inteligência da fé". Este crescimento fez-se à custa do estudo de inúmeros teólogos, Pais e Doutores da Igreja, bispos e Papas, algumas vezes reunidas em concílios ecuménicos, sempre sob a orientação e assistência do Magistério da Igreja e da "graça do Espírito Santo".[5] Fazendo isto, esta pessoa divina purifica gradualmente a Igreja, levando-a a conhecer mais profunda e correctamente as variadas facetas e realidades da Tradição.[3]

Também por outras palavras, o facto de a única revelação de Deus destinada a todos os povos ter ficado concluída com Cristo e o testemunho que d'Ele nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia, que garante e interpreta tal acontecimento, isto não significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da Igreja Católica: «No entanto, apesar de a Revelação ter acabado, não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está reservado à fé cristã apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos séculos».[4]

Esta relação entre o vínculo com a unicidade do acontecimento de Revelação completada em Cristo e o progresso na sua compreensão está optimamente ilustrada nos discursos de despedida de Jesus, quando Ele declara aos discípulos: «Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar».[6] Por um lado, o Espírito Santo serve de guia, desvendando assim um conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade da fé cristã, e que é tal que não estará concluída jamais. Por outro lado, esse acto de guiar é «receber» do tesouro do próprio Jesus Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução por obra do Espírito Santo. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa frase do Papa Gregório Magno: «As palavras divinas crescem com quem as lê».[7]

O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais, através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e, consequentemente, o «crescimento da Palavra» (ou "crescimento na inteligência da fé"): realiza-se por meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais e por meio da pregação daqueles «que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade».[8]

O processo do desenvolvimento doutrinal, que tem que ser sempre contínuo e fiel à Tradição católica, implica a formulação (e não a criação) gradual e infalível de dogmas, que, uma vez proclamados, são imutáveis e eternas.[3] Mas, "a de­­fi­nição dos dogmas ao longo da his­tó­­ria da Igreja não quer dizer que tais ver­dades só tardiamente tenham sido re­veladas, mas que se tornaram mais cla­ras e úteis para a Igreja na sua progres­são na fé".[9] Uma vez proclamado solenemente, "nenhum dogma pode ser negado, nem mesmo pelo Papa ou por decisão conciliar".[3]

Papa Bento XVI

O Papa Bento XVI considerou que a doutrina de Newman sobre o desenvolvimento do dogma foi, "com a doutrina sobre a consciência, o seu contributo decisivo para a renovação da teologia. Com isto ele pôs nas nossas mãos a chave para inserir na teologia um pensamento histórico, ou melhor: ele ensinou-nos a pensar historicamente a teologia, e precisamente desta forma, a reconhecer a identidade da fé em todas as mutações". [10]

O Papa defendeu também que "a concepção de Newman sobre a ideia do desenvolvimento marcou o seu caminho rumo ao catolicismo. Contudo não se trata apenas de um desenvolvimento coerente de ideias. No conceito de desenvolvimento está em jogo a própria vida pessoal de Newman, [...] a própria experiência pessoal de uma conversão jamais concluída, e assim ofereceu-nos a interpretação não só do caminho da doutrina cristã, mas também da vida cristã". Continuando com o paralelismo entre o desenvolvimento da doutrina e a conversão de Newman, o Papa salientou também que Newman "foi ao longo de toda a sua vida uma pessoa que se converteu, que se transformou, e desta forma permaneceu sempre ele mesmo, e tornou-se sempre mais ele mesmo." [10]

Desenvolvimento da doutrina vs evolução dos dogmas

Também no século XIX e inícios do século XX, houve teólogos que fizeram uma compreensão mais radical, mas distorcida, do desenvolvimento da doutrina, que é conhecida como a evolução dos dogmas. Este ponto de vista radical, misturado com várias correntes filosóficas da altura (ex: vitalismo, imanentismo, cientificismo e historicismo), esteve no centro da controvérsia modernista, durante o pontificado de São Pio X. A "evolução dos dogmas" acabou por ser condenada e considerada herética na encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907), escrita pelo Papa Pio X. Embora os intelectuais modernistas, tais como George Tyrrell e Alfred Loisy, defendiam algumas vezes a influência das ideias de Newman sobre o seu pensamento, o seu objetivo principal não era compreender as antigas raízes da doutrina católica nem estudar a compatibilidade de todas as declarações doutrinais (quer as do passado quer as do presente), mas sim era fazer evoluir a doutrina católica de acordo com as suas próprias ideias mutáveis, conforme o espírito liberal e relativista dos tempos. Por isso, o modernismo foi considerado pelo Papa Pio X como a "síntese de todas as heresias".

Referências

  1. «Obras Recomendadas». Doutrina Católica. Consultado em 22 de Setembro de 2010
  2. «Revelation» (em inglês). Catholic Encyclopedia. Consultado em 22 de Setembro de 2010
  3. «DESENVOLVIMENTO e EVOLUÇÃO DO DOGMA». Consultado em 25 de agosto de 2006. Arquivado do original em 25 de agosto de 2006
  4. IGREJA CATÓLICA (2000). Catecismo da Igreja Católica. Coimbra: Gráfica de Coimbra. pp. N. 66. ISBN 972-603-208-3
  5. IGREJA CATÓLICA (2000). Catecismo da Igreja Católica. Coimbra: Gráfica de Coimbra. pp. N. 94. ISBN 972-603-208-3
  6. João 16:12-14
  7. CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre Ezequiel 1, 7, 8
  8. Dei Verbum, n. 8
  9. «Definição dogmática». Enciclopédia Católica Popular. Consultado em 3 de Junho de 2009
  10. DISCURSO DO CARDEAL JOSEPH RATZINGER NO CENTENÁRIO DA MORTE DO CARDEAL JOHN HENRY NEWMAN (1990)

Bibliografia

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